Começa com dois, cinco reais, mas as quantias logo aumentam e de repente a sua vida e a das pessoas ao redor se torna um inferno. Esta é a outra face das apostas esportivas, atividade que está em todos os espaços publicitários (das bordas dos campos de futebol aos influenciadores digitais), mas que ainda esconde um lado trágico.
Com a possibilidade de regulamentação da atividade cada vez mais próxima de acontecer no Brasil, a preocupação com o vício também deve pautar o debate público. O próprio Senado Federal, por meio de sua Consultoria Legislativa, reconheceu em estudo publicado em março que a facilidade do acesso proporcionado pela internet é um fator de risco. Em artigo publicado no site Uol, o jornalista Demétrio Vecchioli também questiona se o custo social negativo das apostas valerá a pena no longo prazo considerando os problemas de saúde pública a serem agravados pela atividade.
@caiiommoreira Meu relato de como perdi mais de 2.500 reais na bl4ze, infelizmente eu cai na lábia dos youTubers, te aconselho a não seguir o mesmo caminho! #relato #fy #engajamento #blaze #casino #conselho #dicas #tutorial ♬ Love You So – The King Khan & BBQ Show
Nas redes sociais, os relatos de problemas relacionados ao vício em jogos de azar têm se multiplicado. O tiktoker Caio Moreira viralizou no aplicativo ao contar como perdeu 2,6 mil reais na Blaze, uma das casas de apostas mais conhecidas no país e que conta até com a benção do jogador Neymar Jr.
Caio conta que começou colocando 40 reais no cassino online e rapidamente fez o dinheiro aumentar para 800, que segundo ele o deixou com “adrenalina” e vontade de seguir jogando. Quando continuou, perdeu tudo que havia ganhado. Tentou resgatar o que perdeu depositando mais dinheiro e participando de outros jogos na plataforma, mas percebeu que havia algo errado quando começou a recorrer aos seus cartões de crédito. “Eu me sentia um doente, como se eu estivesse viciado. Eu acordava chorando, pois eu gastava um dinheiro que eu sabia que ia precisar”, relatou ele no depoimento com aproximadamente 250 mil visualizações. Nos comentários, muitas pessoas relataram passar pelo mesmo. “Eu perdi dez vezes isso que você falou! Minha dignidade foi embora e eu estou só vivendo agora”, disse outro perfil.
Um problema que não vê classes econômicas
Assim como qualquer outro transtorno psicológico, o vício em jogos de azar não se restringe às pessoas anônimas ou mais pobres. O humorista Rodrigo Magal relatou no podcast Esquizofrenoias ter enfrentado um problema grave com os jogos. Após ter saído do Porta de Fundos (onde era diretor), Magal entrou na época inicial da pandemia de Covid-19 trabalhando apenas com lives no Facebook. Buscando uma segunda renda por precaução caso fosse dispensado, que segundo ele era uma possibilidade considerável, entrou no mundo das apostas. “Eu não aceitava perder. Eu perdia, ia lá e jogava 100 reais num jogo, perdia de novo”, relatou Magal no episódio. Participando de outro podcast (desta vez o Inteligência LTDA), o humorista revelou a quantia total do prejuízo: 100 mil reais.
Durante uma entrevista em 2021, o cantor Latino também revelou que já foi viciado em corridas de cavalos e fazia grandes apostas. Ele afirmou que chegou a perder cerca de R$ 30 milhões, o que o deixou sem bens e endividado. Ele explicou que isso ocorreu nos anos 90, quando tinha um alto ganho financeiro.
Reconhecendo a doença: veja como procurar ajuda
Assim como a dependência química do álcool e outras drogas, o vício em jogos é uma doença comportamental (e que pode ser tratada). De acordo com matéria da BBC, estudos de neuroimagem mostram que várias regiões do cérebro estão associadas ao jogo de azar, incluindo o córtex pré-frontal ventromedial, o córtex frontal orbital e a ínsula. Jogadores compulsivos apresentam maior atividade nessas áreas e uma maior ativação no sistema de recompensa do cérebro, incluindo o núcleo caudado. A dopamina, neurotransmissor importante no sistema de recompensa, é conhecida por reforçar a compulsão por jogos, aumentando os níveis de excitação e reduzindo a inibição de decisões arriscadas.
O psiquiatra Hermano Tavares contou em entrevista para o médico Drauzio Varella algumas dicas para que se perceba um comportamento perigoso em apostadores:
“O jogador patológico perdeu a dimensão do lazer, do entretenimento. Jogar não é mais uma coisa que faz para divertir-se. Costumo dar o seguinte exemplo: o indivíduo vai ao cinema com a namorada, compra os ingressos, pipoca, refrigerante e paga para guardar o carro no estacionamento. Na saída diz: “Puxa, que azar! Gastei R$ 50,00 e o filme não valeu a pena!”, mas não volta depois para recuperar o que gastou. Com o jogador patológico, é diferente. Digamos que tenha despendido os mesmos R$ 50,00 para divertir-se numa mesa de jogo. Não passa por sua cabeça que gastou essa quantia num momento de lazer. Acha que perdeu R$ 50,00 e planeja voltar no dia seguinte para recuperar o dinheiro. Evidentemente, para conseguir seu intento, precisará apostar quantias cada vez maiores, porque as probabilidades são sempre contra o jogador e a favor da casa. Ele aposta R$ 100,00 para recuperar os R$ 50,00, não ganha e amarga um prejuízo de R$ 150,00. Inconformado, como uma bola de neve descendo a ladeira, o rombo financeiro cresce, pois ele aposta um volume cada vez maior dinheiro na vã tentativa de recuperar o que perdeu.”
– Hermano Tavares para o site Drauzio Varella (2011).
De acordo com o Programa Ambulatorial do Jogo Patológico (PRO-AMJO) do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (IPq-HCFMUSP), recomenda-se que a pessoa em potencial problema de vício procure um médico ou psicólogo de confiança para discutir a situação. Também é importante compartilhar o problema com familiares e amigos, pedindo-lhes apoio para encontrar um profissional especializado.
Com reuniões em ao menos 13 cidades brasileiras (incluindo Porto Alegre), a iniciativa Jogadores Anônimos é uma alternativa interessante para quem sente que precisa de ajuda. Você pode obter informações pelo site, que também conta com uma cartilha que ajuda a reconhecer pessoas com o problema chamada “20 Perguntas”.